Escravo negro(?) empurrando mala sem alça da charqueada - Desenho de aluno |
Neste mês, nos preparando para a comemoração do aniversário da cidade de Pelotas, a coordenação do currículo do Colégio Municipal Pelotense organizou um passeio com os 4ºs anos para visitar a charqueada São João, uma das 40 que existiram às margens do arroio Pelotas. Lá, nada mais resta do fedor insuportável dos restos dos mais de 300 mil cabeças de gado abatidas por ano no ápice da produção do charque. Do sofrimento da escravidão, restam apenas algumas correntes e grilhões deteriorados, uma réplica de pelourinho/tronco e restos da senzala, que a rede Globo por ironia transformou em capelinha para gravar a série "A Casa das 7 Mulheres".
De todos os itens da charqueada, o que mais chamou a atenção dos alunos foi uma enorme mala sem alça antiga, muito maior que um baú. Para as crianças, em sua ingenuidade, tendo ouvido apenas a explicação superficial da guia turística do local, imaginar um escravo carregando aquela enorme mala foi uma das piores situações que conseguiram imaginar, depois de apanhar no tronco. Afinal, apanhar sempre é apanhar, mas imaginem carregar uma mala sem alça!
Hoje, em sala de aula, uma semana depois da visita, relembrei muitos detalhes e tentei contextualizar tudo, enfocando as dificuldades da vida do negro na charqueada. E a água fria do arroio, no inverno? E o perigo de morte por afogamento puxando a nado as Pelotas carregadas? E o sofrimento e os danos gravíssimos à saúde causados pelo trabalho intermitente com o sal, sem equipamento de proteção? E a violência psicológica? Quantas formas de opressão?
As crianças refletiram bastante, e melhoraram um bocado o real entendimento da história de Pelotas. Entenderam o que realmente acontecia nas charqueadas, financiando a "glória" e "opulência" que hoje exibimos aos turistas, sem tocar muito nos assuntos constrangedores. Para finalizar, perguntei quem deles tinha algum antepassado afrodescendente na família, e 90% da turma tinha! 90%!!!
Depois de toda essa reflexão, eles foram desenhar o que lembravam da charqueada, e não mais queriam representar apenas a beleza natural da paisagem. Mas ainda queriam desenhar a mala sem alça! E desenharam! E na hora de pintar o escravo, a maioria dos alunos brancos pintou o seu negro com o famigerado lápis "cor de pele"... Que pele é essa? Pele de quem? Ele não se deu conta de que a pele do escravo era negra, ou na confusão de se colocar no lugar daquele trabalhador escravo, acabou deixando escapar um pouco do seu "eu" na imagem desse "outro"? Distração ou empatia? Legal foi ver a cara deles quando eu perguntava se existia escravo branco nas charqueadas!
Para concluir, eu queria propor que no dia do índio, do orgulho negro, na semana da luta contra a homofobia, etc. você professor discuta as questões sociais com os seus alunos, sem medo, com maturidade. Eles são maduros o suficiente para terem conta no facebook, para namorar e para quererem andar por aí sem a companhia dos pais; saberão ser maduros para ouvir e encarar a verdade. E precisam muito disso! Neste caso do passado de escravidão do Brasil, acredite se quiser, alguns alunos negros não sabem o quê é "preconceito", "escravo", "afrodescendente", etc.
Até quando vamos deixar estas falhas abertas no nosso sistema de educação? Até quando vamos amargar nossos corações ouvindo dezenas de alunos afrodescendentes de 1º ano negando sua raça e se dizendo brancos? Até quando vamos deixar os "Marcos Felicianos" amaldiçoarem as pessoas dessa maneira ignorante, em nome de seu deus? Quando vamos ensinar que não existe cabelo ruim, mas gente ruim? Quando vamos ter uma educação multicultural, para todos? Quando o lápis marrom e o preto começarão a ser chamados cor de pele?
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